domingo, 25 de setembro de 2016

"Pra casa com goteiras, pintamos as paredes" – vamos falar de reforma

Por Elimacuxi

O tema da semana foi a famigerada MP da Reforma do Ensino Médio, que prevê mudanças importantes naquele nível de ensino, como a determinação do aumento substancial de sua carga horária, por exemplo. Confesso que tive preguiça de me pronunciar sobre o tema. Entre milhares de opiniões de ‘especialistas’ de rede social, viu-se, como tem acontecido com praticamente todas as questões relevantes do Brasil nos últimos meses, um debate esvaziado que pode ser resumido da seguinte forma: enquanto muitos rechaçavam as mudanças, outros repetiam insistentemente que o projeto “era da Dilma”.

Fiquei pensando sobre o que essa discussão empobrecida revela: não são poucos os que terminam o ensino médio sem a menor ideia, por exemplo, de como funciona o Estado brasileiro ou de como foi construída a nossa jovem e frágil democracia, servindo mais facilmente de massa de manobra aos mais escusos interesses. Creio que muitos dos que afirmam que Michel Temer apenas deu andamento às propostas do governo Dilma  embora tenham razão no que diz respeito a algumas mudanças propostas  ignoram a diferença fundamental entre as duas formas de buscar implementá-las legalmente: Projetos de Lei (que podem ser feitos pelo poder Legislativo, pelo poder Executivo e/ou por iniciativa popular), são textos que apresentam propostas que devem passar pela apreciação dos Deputados, podem ser discutidos em comissões especiais na Câmara e necessitam de aprovação no plenário para entrar em vigor, tornando-se leis de fato. Medidas Provisórias, ao contrário, são basicamente um tipo de Decreto Lei, uma forma encontrada pelo nosso peculiar sistema político, para permitir que o poder Executivo legisle. As MPs, como são chamadas as leis desse tipo, entram em vigor imediatamente à sua publicação pelo governo. Diante disso, preparar um projeto de lei, como o governo Dilma vinha fazendo, é algo totalmente diferente de baixar uma MP, como fez Temer. Penso que, num país democrático, mudanças capazes de impactar a vida de milhões de jovens e de boa parte dos servidores públicos de Municípios, Estados e União, não deveriam ser feitas sem um longo debate, jamais deveriam ser baixadas por decreto ou Medida Provisória. Tem mais: uma Medida Provisória, como a MP da Reforma do Ensino Médio, tem força de lei, mas pode deixar de ter validade se não for aprovada pelo Congresso dentro do prazo de dois meses. Então, pode-se dizer que o governo determinou alterações que, em dois meses, podem mudar de novo.

Sobre o conteúdo da MP, há quem considere que pontos da Reforma, como a flexibilização da obrigatoriedade de algumas disciplinas (educação física, artes, filosofia, sociologia) vai aumentar o interesse e permitir maior participação dos estudantes, aproximando nosso sistema do que acontece nas High School americanas. Mas há quem lembre que as disciplinas afetadas pela flexibilização são exatamente aquelas que foram excluídas do currículo durante a ditadura, que apenas muito recentemente voltaram a figurar como obrigatórias no ensino médio. Estes consideram a medida um retrocesso, que terá como resultado prático a exclusão dessas disciplinas do currículo.

O aumento proposto da carga horária do ensino médio também não é consenso, sobretudo quando se questiona sobre como isso será implementado de fato. Há quem pondere que, ao estabelecer o ensino médio em tempo integral, o governo praticamente tornará inviável o estudo para aqueles jovens de classe mais baixa que necessitam trabalhar. Para muitos, o ponto mais sensível da Medida Provisória é o que abre mão da exigência de formação específica do professor para ministrar as disciplinas, o que implicaria em maior precarização das condições de trabalho e da carreira docente.

O que todos concordam é que o ensino médio precisa de mudanças. Trabalhei nesse nível de ensino por mais de uma década e listei alguns dos problemas que me parecem mais sérios: em termos de currículo, muitas vezes ocorre a mera repetição de conteúdos estudados no ensino fundamental, a distribuição da carga horária entre as disciplinas é feita de modo arbitrário e a desejada interdisciplinaridade ainda não se tornou uma realidade nas salas de aula; os estudantes são pouco ouvidos no processo de organização do ensino-aprendizagem e possuem pouca ou nenhuma autonomia no que diz respeito ao que podem ou devem estudar; faltam profissionais especialistas nas diversas áreas para ensinar – não é raro que turmas passem o ano todo sem professor de química, ou física, ou artes; falta vontade política para pagar o piso salarial dos professores em todo o Brasil, nas redes estaduais e também na rede privada de ensino, onde se opta por pagar ‘hora-aula’; a carreira docente é desvalorizada, falta incentivo aos jovens que estudam em licenciaturas, assim como falta incentivo aos professores para a formação continuada; a infraestrutura da maior parte das escolas se resume a salas de aula com quadros e carteiras, não há biblioteca, não há inovação tecnológica, não há ludicidade e todo o espaço fica muito aquém do que se necessita para educar de verdade. Tais problemas são estruturais e, reparem, não são atacados pela reforma...

A precarização da profissão docente é um dado histórico em nosso país e começa na formação oferecida pelos governos que criam mecanismos para formar licenciados a toque de caixa, com pouco investimento. É o que se assiste desde a criação das licenciaturas curtas, durante a ditadura civil-militar, até o Parfor e outras iniciativas presentes hoje. Além disso, a segunda metade do século XX viu o despencar dos salários dos professores. Por outro lado, a ampliação da rede de ensino e inclusão da maior parte da população jovem nas escolas trouxe o aumento das cobranças que se impõem a esses profissionais. A Lei que definiu o piso salarial para professores no Brasil tem apenas oito anos de existência e embora o piso não chegue a três salários mínimos, ainda não é cumprida por boa parte dos estados e municípios. Os resultados dessa política são tenebrosos e de longo prazo: profissionais frustrados, sem condições de exercer com dignidade a sua profissão, jovens talentosos fugindo da docência para outras carreiras, constante desvalorização do papel do professor, como na previsão de permitir que professores sem formação específica possam atuar no ensino médio. Estamos na contramão do que ocorre nos países com melhor educação no mundo, que exigem formação continuada e treinamento especial para o cargo,  professores trabalham com número limitado de estudantes, recebem boa remuneração por seu trabalho, possuem relativa autonomia em relação aos seus métodos de ensino e, sobretudo, são profissionais que contam com grande respeito por parte da sociedade.      

Para a professora de história que sou, que pensa educação de forma integral e continuada, incomoda a diminuição da importância das disciplinas de filosofia, sociologia, artes e educação física. Essas áreas do conhecimento são fundamentais para a formação do jovem, sua constituição identitária, sua saúde e construção de senso crítico. Filosofia, sociologia e artes são as áreas do conhecimento que melhor questionam, desnaturalizam e ajudam a ver o mundo para além do óbvio. Na contemporaneidade, em que o interesse é a produção e a reprodução de consumidores subservientes, tais conhecimentos não servem para ganhar dinheiro. Mas estamos falando de formação. Não nos interessam jovens que saibam promover a problematização das questões políticas, econômicas, sociais?


Fonte: www.medicaldaily.com. Shutterstock.

Para encerrar sem ficar em cima do muro, creio que se equivoca quem pensa que, com essa reforma, as salas de aula do ensino médio brasileiro vão se transformar em cenários do High School Music ou mesmo de Malhação. Para além da empobrecida discussão sobre quem é pai ou mãe da reforma, antes que comecem a me chamar de petralha e outros adjetivos aos quais até já me acostumei, queria lembrar que há, aqui, uma questão crucial sobre nosso futuro, pois educação é coisa séria, um dos pilares fundamentais na construção da riqueza cultural, social, política e econômica de um país.

* Elimacuxi é professora e poeta; atualmente ensina história e crítica de arte no curso de Artes Visuais da UFRR.

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