Por Elimacuxi
O tema da semana foi a famigerada MP
da Reforma do Ensino Médio, que prevê mudanças importantes naquele nível de
ensino, como a determinação do aumento substancial de sua carga horária, por
exemplo. Confesso que tive preguiça de me pronunciar sobre o tema. Entre
milhares de opiniões de ‘especialistas’ de rede social, viu-se, como tem
acontecido com praticamente todas as questões relevantes do Brasil nos últimos
meses, um debate esvaziado que pode ser resumido da seguinte forma: enquanto muitos
rechaçavam as mudanças, outros repetiam insistentemente que o projeto “era da
Dilma”.
Fiquei pensando sobre o que essa
discussão empobrecida revela: não são poucos os que terminam o ensino médio sem
a menor ideia, por exemplo, de como funciona o Estado brasileiro ou de como foi
construída a nossa jovem e frágil democracia, servindo mais facilmente de massa
de manobra aos mais escusos interesses. Creio que muitos dos que afirmam que
Michel Temer apenas deu andamento às propostas do governo Dilma – embora tenham
razão no que diz respeito a algumas mudanças propostas – ignoram a diferença fundamental entre as duas
formas de buscar implementá-las legalmente: Projetos de Lei (que podem ser
feitos pelo poder Legislativo, pelo poder Executivo e/ou por iniciativa popular),
são textos que apresentam propostas que devem passar pela apreciação dos
Deputados, podem ser discutidos em comissões especiais na Câmara e necessitam
de aprovação no plenário para entrar em vigor, tornando-se leis de fato. Medidas
Provisórias, ao contrário, são basicamente um tipo de Decreto Lei, uma forma
encontrada pelo nosso peculiar sistema político, para permitir que o poder
Executivo legisle. As MPs, como são chamadas as leis desse tipo, entram em
vigor imediatamente à sua publicação pelo governo. Diante disso, preparar um
projeto de lei, como o governo Dilma vinha fazendo, é algo totalmente diferente
de baixar uma MP, como fez Temer. Penso que, num país democrático, mudanças capazes
de impactar a vida de milhões de jovens e de boa parte dos servidores públicos
de Municípios, Estados e União, não deveriam ser feitas sem um longo debate,
jamais deveriam ser baixadas por decreto ou Medida Provisória. Tem mais: uma
Medida Provisória, como a MP da Reforma do Ensino Médio, tem força de lei, mas pode
deixar de ter validade se não for aprovada pelo Congresso dentro do prazo de
dois meses. Então, pode-se dizer que o governo determinou alterações que, em
dois meses, podem mudar de novo.
Sobre o conteúdo da MP, há quem
considere que pontos da Reforma, como a flexibilização da obrigatoriedade de
algumas disciplinas (educação física, artes, filosofia, sociologia) vai aumentar
o interesse e permitir maior participação dos estudantes, aproximando nosso
sistema do que acontece nas High School americanas. Mas há quem lembre que as
disciplinas afetadas pela flexibilização são exatamente aquelas que foram
excluídas do currículo durante a ditadura, que apenas muito recentemente voltaram
a figurar como obrigatórias no ensino médio. Estes consideram a medida um
retrocesso, que terá como resultado prático a exclusão dessas disciplinas do
currículo.
O aumento proposto da carga horária do
ensino médio também não é consenso, sobretudo quando se questiona sobre como
isso será implementado de fato. Há quem pondere que, ao estabelecer o ensino
médio em tempo integral, o governo praticamente tornará inviável o estudo para
aqueles jovens de classe mais baixa que necessitam trabalhar. Para muitos, o
ponto mais sensível da Medida Provisória é o que abre mão da exigência de
formação específica do professor para ministrar as disciplinas, o que
implicaria em maior precarização das condições de trabalho e da carreira
docente.
O que todos concordam é que o ensino
médio precisa de mudanças. Trabalhei nesse nível de ensino por mais de uma
década e listei alguns dos problemas que me parecem mais sérios: em termos de
currículo, muitas vezes ocorre a mera repetição de conteúdos estudados no
ensino fundamental, a distribuição da carga horária entre as disciplinas é
feita de modo arbitrário e a desejada interdisciplinaridade ainda não se tornou
uma realidade nas salas de aula; os estudantes são pouco ouvidos no processo de
organização do ensino-aprendizagem e possuem pouca ou nenhuma autonomia no que
diz respeito ao que podem ou devem estudar; faltam profissionais especialistas
nas diversas áreas para ensinar – não é raro que turmas passem o ano todo sem
professor de química, ou física, ou artes; falta vontade política para pagar o
piso salarial dos professores em todo o Brasil, nas redes estaduais e também na
rede privada de ensino, onde se opta por pagar ‘hora-aula’; a carreira docente é
desvalorizada, falta incentivo aos jovens que estudam em licenciaturas, assim
como falta incentivo aos professores para a formação continuada; a
infraestrutura da maior parte das escolas se resume a salas de aula com quadros
e carteiras, não há biblioteca, não há inovação tecnológica, não há ludicidade
e todo o espaço fica muito aquém do que se necessita para educar de verdade.
Tais problemas são estruturais e, reparem, não são atacados pela reforma...
A precarização da profissão docente é
um dado histórico em nosso país e começa na formação oferecida pelos governos
que criam mecanismos para formar licenciados a toque de caixa, com pouco
investimento. É o que se assiste desde a criação das licenciaturas curtas,
durante a ditadura civil-militar, até o Parfor e outras iniciativas presentes
hoje. Além disso, a segunda metade do século XX viu o despencar dos salários
dos professores. Por outro lado, a ampliação da rede de ensino e inclusão da
maior parte da população jovem nas escolas trouxe o aumento das cobranças que
se impõem a esses profissionais. A Lei que definiu o piso salarial para
professores no Brasil tem apenas oito anos de existência e embora o piso não
chegue a três salários mínimos, ainda não é cumprida por boa parte dos estados
e municípios. Os resultados dessa política são tenebrosos e de longo prazo:
profissionais frustrados, sem condições de exercer com dignidade a sua
profissão, jovens talentosos fugindo da docência para outras carreiras,
constante desvalorização do papel do professor, como na previsão de permitir
que professores sem formação específica possam atuar no ensino médio. Estamos
na contramão do que ocorre nos países com melhor educação no mundo, que exigem
formação continuada e treinamento especial para o cargo, professores trabalham com número limitado de
estudantes, recebem boa remuneração por seu trabalho, possuem relativa
autonomia em relação aos seus métodos de ensino e, sobretudo, são profissionais
que contam com grande respeito por parte da sociedade.
Para a professora de história que sou,
que pensa educação de forma integral e continuada, incomoda a diminuição da importância
das disciplinas de filosofia, sociologia, artes e educação física. Essas áreas
do conhecimento são fundamentais para a formação do jovem, sua constituição
identitária, sua saúde e construção de senso crítico. Filosofia, sociologia e
artes são as áreas do conhecimento que melhor questionam, desnaturalizam e
ajudam a ver o mundo para além do óbvio. Na contemporaneidade, em que o
interesse é a produção e a reprodução de consumidores subservientes, tais
conhecimentos não servem para ganhar dinheiro. Mas estamos falando de formação.
Não nos interessam jovens que saibam promover a problematização das questões
políticas, econômicas, sociais?
Fonte: www.medicaldaily.com. Shutterstock. |
Para encerrar sem ficar em cima do
muro, creio que se equivoca quem pensa que, com essa reforma, as salas de aula
do ensino médio brasileiro vão se transformar em cenários do High School Music
ou mesmo de Malhação. Para além da empobrecida discussão sobre quem é pai ou
mãe da reforma, antes que comecem a me chamar de petralha e outros adjetivos
aos quais até já me acostumei, queria lembrar que há, aqui, uma questão crucial
sobre nosso futuro, pois educação é coisa séria, um dos pilares fundamentais na
construção da riqueza cultural, social, política e econômica de um país.
* Elimacuxi é professora e poeta; atualmente ensina história e
crítica de arte no curso de Artes Visuais da UFRR.
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