Descendente do povo pemon, alfabetizado em Castelhano e criado na Venezuela até a antiga sétima série do ensino fundamental, Edgar Borges escreve literatura em um Português tão afiado quanto um Machado de Assis.
Dono do mesmo sobrenome do argentino Jorge Luis (também
contista e um dos mais importantes escritores de todos os tempos), Borges não
se contenta apenas com o sucesso individual: no Brasil, participou ativamente
de conferências de cultura e do Fórum Permanente de Cultura de Roraima. Foi,
por dois mandatos seguidos, titular do Colegiado Setorial de Literatura, Livro
e Leitura do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), do Ministério da
Cultura (MinC) e criou o Coletivo Caimbé, que, com suas ações de incentivo à
leitura e à literatura, vai aonde o Estado não
chega.
Nesta conversa, como bom escritor, soltou o verbo: “Estamos com atraso de uma década, pelo menos, em
relação a outras partes do Brasil quanto às políticas públicas e ações
específicas para a literatura.”
Borges defendeu ainda a construção, em
parceria com a sociedade, de políticas públicas para o segmento, criticou o
investimento prioritário de recursos da cultura em shows e eventos focados nas
multidões e avaliou negativamente “hábitos
locais” como o de só apoiar projetos daqueles que vão até o balcão do dirigente
de plantão ou o de jogar a responsabilidade do aporte financeiro nas mãos dos
empresários que aceitam patrocinar projetos aprovados na lei de incentivo.
Com vocês, o mais roraimense entre os escritores
venezuelanos:
O
Coletivo Caimbé tem desenvolvido ações de circulação literária onde, muitas
vezes, a política cultural do Estado brasileiro não chega, como bairros da
capital distantes do centro e comunidades indígenas e rurais. Por que essa
escolha?
Desde 2009, quando surgiu o coletivo,
optamos pela itinerância cultural das nossas ações. Por vários motivos: não
termos uma sede física, sermos muitos permeáveis a propostas de parcerias e,
sobretudo, por querer levar nossas atividades ao maior número possível de
pessoas. Além disso, apresentamos e tivemos alguns projetos aprovados em
editais do Governo Federal que apresentavam a oportunidade de fazer ações fora
da área urbana. Isso nos permitiu desenvolver trabalhos culturais em
comunidades indígenas e ribeirinhas de Roraima e do Amapá, cidades do interior
de nosso Estado, de Pernambuco e das Alagoas, além de diversas ações na
periferia de Boa Vista. No caso de nossa cidade, buscamos parcerias com outros
ativistas culturais para fortalecer as suas ações ao mesmo tempo em que
ampliávamos o nosso raio de ação. Qual é a nossa avaliação sobre tudo isso? Que
se não tivesse sido desse jeito, muitas pessoas nunca teriam tido a
oportunidade de ouvir poetas declamando, pegar um livro de autores regionais ou
até ver um filme projetado na tela. Como falava um dos vários parceiros que
tivemos ao longo dos anos: aonde o Estado não chega, o Caimbé chega.
Brincadeiras à parte, sempre
buscamos pautar nossas ações pelo nível de impacto positivo que teriam para a
leitura e a literatura roraimense, tanto do lado do público como para os
escritores e artistas.
Você
é um escritor que se autoafirma indígena urbano. O que a sociedade de Roraima
tem a ganhar ao conhecer as manifestações literárias indígenas, tanto daqueles
que vivem nas comunidades quanto na cidade?
Tem muito a ganhar. A arte produzida por
indígenas que vivem nas áreas urbanas ou nas comunidades têm tido muita
visibilidade a partir da última década, principalmente. Escritores como
Cristino Wapichana, um dos grandes nomes da atualidade na área da literatura
infantil no Brasil, apresentam a cosmovisão indígena em suas obras, abrindo
caminhos e demarcando espaços em uma sociedade que ainda insiste em menosprezar
os saberes e as histórias dos primeiros povos. Felizmente, há muitas pessoas
abertas a esta experiência transcultural. É bom para elas e é bom para os
artistas indígenas.
Que
políticas públicas de estímulo à literatura de outros Estados poderiam dar
certo em Roraima?
Muitas, muitas, muitas. Estamos com atraso
de uma década, pelo menos, em relação a outras partes do Brasil quanto às
políticas públicas e ações específicas para a literatura. Para solucionar isso,
a primeira etapa seria: os poderes públicos estadual e municipais entenderem
que a nossa área é ampla e envolve as turmas da criação, mediação e produção.
Compreendendo-se quem está e o que fazem os integrantes de cada um desses
segmentos, fica mais fácil buscar exemplos de sucesso de políticas públicas
desenvolvidas no Brasil e replicá-las. Não podemos ter vergonha de copiar o que
vem estimulando o setor em outros Estados. Para inspirar-se, pode-se inclusive
consultar o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), construído em parceria
com representantes da sociedade civil e que está dividido em quatro eixos:
democratização do acesso, fomento à leitura e à formação de mediadores,
valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico e
desenvolvimento da economia do livro. A título de exemplo prático, editais que
estimulassem a circulação de autores e contadores de histórias por escolas
urbanas, rurais e indígenas seriam uma boa. Outro exemplo: editais de bolsas
para fortalecimento de saraus públicos. Mais um: que o Estado e prefeituras
adquirissem nossas obras para o acervo das bibliotecas públicas e escolares,
com posterior convite para que cada autor participasse, remuneradamente, de
encontros com estudantes e o público das bibliotecas. Enfim, há muitas ações
que podem ser feitas, mas tudo passa por compreender que o poder público tem responsabilidades
com o fortalecimento da cultura e que isso vai muito além de promover shows e
eventos focados nas multidões.
Qual
a importância de planos locais (estadual e municipais) de livro, leitura,
literatura e bibliotecas?
Quando elaborados de forma participativa, envolvendo muito
debate e conversa com a sociedade civil, os planos apresentam as diretrizes do
fortalecimento e da estruturação das políticas públicas para o segmento,
definindo eixos e responsabilidades. Não dá para fazer um plano em uma semana,
em uma reunião ou a partir de um texto criado pela assessoria governamental. No
Ceará e no Rio Grande do Sul, há bons exemplos a serem seguidos, inclusive com
a oportunidade de ter a consultoria de pessoas atuantes na área e com muita
experiência neste tipo de processo. Essa troca de saberes e a pesquisa sobre os
planos são fundamentais. Acima de tudo, os planos são importantes para definir
políticas públicas que acabem com hábitos locais como o de só apoiar projetos
daqueles que vão até o balcão do dirigente de plantão ou o de jogar a
responsabilidade do aporte financeiro nas mãos dos empresários que aceitam
patrocinar projetos aprovados na lei de incentivo.
Na sua opinião,
que propostas feitas em conferências de cultura anteriores poderiam ser
colocadas em prática para desenvolver o cenário das políticas públicas
culturais, em especial do segmento literário de Roraima?
Eu participei das duas últimas conferências
estaduais e municipais de cultura. Ambas têm algo em comum: poucas pessoas
tiveram acesso ao documento consolidado com todas as propostas aprovadas. Os
gestores à época simplesmente cumpriram a tabela de realizá-las e nada mais.
Claro que os produtores culturais têm a sua parcela de culpa nisso, pois não
houve muita mobilização posterior para cobrar a implementação. Enfim, foram
dias produtivos de debates entres representantes dos segmentos, com sugestões
bacanas. Entre elas havia editais para circulação de artistas pelos municípios
e outros Estados; melhoria e criação de espaços públicos para fomentar a
ocupação com as nossas manifestações; criação de editais com bolsas e prêmios
para criadores e mediadores no segmento literário... Um bocado de boas ideias
para serem trabalhadas e modificar o cenário da produção cultural em nosso
Estado. Se os atuais gestores públicos culturais do Estado e de Boa Vista
analisarem novamente as propostas, verão muitas indicações do caminho que
deveríamos trilhar na área cultural.
Entonces, hasta la próxima, baby!
Leia também:
A cultura em RR vive em um limbo, declara ex-presidente do Conselho de Cultura
Leia também:
A cultura em RR vive em um limbo, declara ex-presidente do Conselho de Cultura
Assino embaixo.
ResponderExcluir