sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Políticas de literatura em RR vivem atraso de uma década em relação a outras partes do Brasil, avalia ex-conselheiro nacional de Literatura


Descendente do povo pemon, alfabetizado em Castelhano e criado na Venezuela até a antiga sétima série do ensino fundamental, Edgar Borges escreve literatura em um Português tão afiado quanto um Machado de Assis.

Dono do mesmo sobrenome do argentino Jorge Luis (também contista e um dos mais importantes escritores de todos os tempos), Borges não se contenta apenas com o sucesso individual: no Brasil, participou ativamente de conferências de cultura e do Fórum Permanente de Cultura de Roraima. Foi, por dois mandatos seguidos, titular do Colegiado Setorial de Literatura, Livro e Leitura do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), do Ministério da Cultura (MinC) e criou o Coletivo Caimbé, que, com suas ações de incentivo à leitura e à literatura, vai aonde o Estado não chega.

Nesta conversa, como bom escritor, soltou o verbo: “Estamos com atraso de uma década, pelo menos, em relação a outras partes do Brasil quanto às políticas públicas e ações específicas para a literatura.

Borges defendeu ainda a construção, em parceria com a sociedade, de políticas públicas para o segmento, criticou o investimento prioritário de recursos da cultura em shows e eventos focados nas multidões e avaliou negativamente “hábitos locais” como o de só apoiar projetos daqueles que vão até o balcão do dirigente de plantão ou o de jogar a responsabilidade do aporte financeiro nas mãos dos empresários que aceitam patrocinar projetos aprovados na lei de incentivo.

Com vocês, o mais roraimense entre os escritores venezuelanos:

O Coletivo Caimbé tem desenvolvido ações de circulação literária onde, muitas vezes, a política cultural do Estado brasileiro não chega, como bairros da capital distantes do centro e comunidades indígenas e rurais. Por que essa escolha?

Desde 2009, quando surgiu o coletivo, optamos pela itinerância cultural das nossas ações. Por vários motivos: não termos uma sede física, sermos muitos permeáveis a propostas de parcerias e, sobretudo, por querer levar nossas atividades ao maior número possível de pessoas. Além disso, apresentamos e tivemos alguns projetos aprovados em editais do Governo Federal que apresentavam a oportunidade de fazer ações fora da área urbana. Isso nos permitiu desenvolver trabalhos culturais em comunidades indígenas e ribeirinhas de Roraima e do Amapá, cidades do interior de nosso Estado, de Pernambuco e das Alagoas, além de diversas ações na periferia de Boa Vista. No caso de nossa cidade, buscamos parcerias com outros ativistas culturais para fortalecer as suas ações ao mesmo tempo em que ampliávamos o nosso raio de ação. Qual é a nossa avaliação sobre tudo isso? Que se não tivesse sido desse jeito, muitas pessoas nunca teriam tido a oportunidade de ouvir poetas declamando, pegar um livro de autores regionais ou até ver um filme projetado na tela. Como falava um dos vários parceiros que tivemos ao longo dos anos: aonde o Estado não chega, o Caimbé chega. Brincadeiras à parte, sempre buscamos pautar nossas ações pelo nível de impacto positivo que teriam para a leitura e a literatura roraimense, tanto do lado do público como para os escritores e artistas.

Você é um escritor que se autoafirma indígena urbano. O que a sociedade de Roraima tem a ganhar ao conhecer as manifestações literárias indígenas, tanto daqueles que vivem nas comunidades quanto na cidade?

Tem muito a ganhar. A arte produzida por indígenas que vivem nas áreas urbanas ou nas comunidades têm tido muita visibilidade a partir da última década, principalmente. Escritores como Cristino Wapichana, um dos grandes nomes da atualidade na área da literatura infantil no Brasil, apresentam a cosmovisão indígena em suas obras, abrindo caminhos e demarcando espaços em uma sociedade que ainda insiste em menosprezar os saberes e as histórias dos primeiros povos. Felizmente, há muitas pessoas abertas a esta experiência transcultural. É bom para elas e é bom para os artistas indígenas.

Que políticas públicas de estímulo à literatura de outros Estados poderiam dar certo em Roraima?

Muitas, muitas, muitas. Estamos com atraso de uma década, pelo menos, em relação a outras partes do Brasil quanto às políticas públicas e ações específicas para a literatura. Para solucionar isso, a primeira etapa seria: os poderes públicos estadual e municipais entenderem que a nossa área é ampla e envolve as turmas da criação, mediação e produção. Compreendendo-se quem está e o que fazem os integrantes de cada um desses segmentos, fica mais fácil buscar exemplos de sucesso de políticas públicas desenvolvidas no Brasil e replicá-las. Não podemos ter vergonha de copiar o que vem estimulando o setor em outros Estados. Para inspirar-se, pode-se inclusive consultar o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), construído em parceria com representantes da sociedade civil e que está dividido em quatro eixos: democratização do acesso, fomento à leitura e à formação de mediadores, valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico e desenvolvimento da economia do livro. A título de exemplo prático, editais que estimulassem a circulação de autores e contadores de histórias por escolas urbanas, rurais e indígenas seriam uma boa. Outro exemplo: editais de bolsas para fortalecimento de saraus públicos. Mais um: que o Estado e prefeituras adquirissem nossas obras para o acervo das bibliotecas públicas e escolares, com posterior convite para que cada autor participasse, remuneradamente, de encontros com estudantes e o público das bibliotecas. Enfim, há muitas ações que podem ser feitas, mas tudo passa por compreender que o poder público tem responsabilidades com o fortalecimento da cultura e que isso vai muito além de promover shows e eventos focados nas multidões.

Qual a importância de planos locais (estadual e municipais) de livro, leitura, literatura e bibliotecas?

Quando elaborados de forma participativa, envolvendo muito debate e conversa com a sociedade civil, os planos apresentam as diretrizes do fortalecimento e da estruturação das políticas públicas para o segmento, definindo eixos e responsabilidades. Não dá para fazer um plano em uma semana, em uma reunião ou a partir de um texto criado pela assessoria governamental. No Ceará e no Rio Grande do Sul, há bons exemplos a serem seguidos, inclusive com a oportunidade de ter a consultoria de pessoas atuantes na área e com muita experiência neste tipo de processo. Essa troca de saberes e a pesquisa sobre os planos são fundamentais. Acima de tudo, os planos são importantes para definir políticas públicas que acabem com hábitos locais como o de só apoiar projetos daqueles que vão até o balcão do dirigente de plantão ou o de jogar a responsabilidade do aporte financeiro nas mãos dos empresários que aceitam patrocinar projetos aprovados na lei de incentivo.

Na sua opinião, que propostas feitas em conferências de cultura anteriores poderiam ser colocadas em prática para desenvolver o cenário das políticas públicas culturais, em especial do segmento literário de Roraima?

Eu participei das duas últimas conferências estaduais e municipais de cultura. Ambas têm algo em comum: poucas pessoas tiveram acesso ao documento consolidado com todas as propostas aprovadas. Os gestores à época simplesmente cumpriram a tabela de realizá-las e nada mais. Claro que os produtores culturais têm a sua parcela de culpa nisso, pois não houve muita mobilização posterior para cobrar a implementação. Enfim, foram dias produtivos de debates entres representantes dos segmentos, com sugestões bacanas. Entre elas havia editais para circulação de artistas pelos municípios e outros Estados; melhoria e criação de espaços públicos para fomentar a ocupação com as nossas manifestações; criação de editais com bolsas e prêmios para criadores e mediadores no segmento literário... Um bocado de boas ideias para serem trabalhadas e modificar o cenário da produção cultural em nosso Estado. Se os atuais gestores públicos culturais do Estado e de Boa Vista analisarem novamente as propostas, verão muitas indicações do caminho que deveríamos trilhar na área cultural.

Entonces, hasta la próxima, baby!

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